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segunda-feira, 1 de abril de 2013

As Bibliotecas Públicas no século XXI: uma mudança inalienável?

Nas duas últimas décadas do século XX assistimos, um pouco por toda a Europa, à reivindicação e à construção em vasta escala de novas Bibliotecas Públicas declaradamente abertas a todos os cidadãos. Depois de muito se discutir o fim dos livros como os conhecemos e, por arrastamento, o do lugar os livros, as Bibliotecas Públicas analisadas agora, à luz do novo milénio, demonstram inequivocamente uma evidente mudança em relação à tradicional missão cultural e de ensino, de matriz anglo-saxónica, que até então se pedia a este equipamento cultural. 

Local de múltiplos eventos e encontros os mais diversos, a polivalência cultural e cívica é agora a marca indelével das bibliotecas públicas, cada vez mais versáteis e disponíveis para acolher todo o tipo de públicos e apoiar a sua comunidade.


A Biblioteca Pública deste novo século, para além de lugar de aprendizagem, tornou-se também um lugar para se estar e para se (con)viver. Distante das grandes bibliotecas centradas no empréstimo massivo, sem espaços de estudo e sem utilizadores durante as horas de trabalho, encontramos agora  edifícios abertos, desenhado com preocupações estéticas e de acolhimento dos utilizadores para as mais diversas actividades. Dois exemplos.



Biblioteca Pública de Guadalajara

Na nova Biblioteca Pública Municipal de Guadalajara, em Espanha, outrora um palácio senhorial, existe um grande pátio interior coberto, mobilado com sofás e mesas de apoio. Nas estantes das paredes em volta estão as novidades e as seleções temáticas e num dos lados uma bateria de computadores disponíveis ao público. Num dos cantos, encontra-se um piano de cauda onde de vez em quando um leitor se senta para tocar uma peça de jazz ou de música clássica que se ouve no segundo piso, que é simultaneamente galeria de exposições e também local de trabalho na Internet, bem como na área contígua do fundo local.

Pátio interior coberto.
Sala de estudo (e de jantares de convívio).
No terceiro andar, uma grande sala de estudo acolhe em silêncio total trezentos estudantes das 9h00 às 21h00 em épocas de exame. Nos dias de festa, como no jantar anual dos cerca de 20 clubes de leitura desta Biblioteca, trezentas pessoas jantam nessa mesma sala e, de seguida dançam pela noite fora ao som de um piano acústico. no jardim interior ou no referido átrio coberto quando o tempo está de chuva. 

Sala polivalente.

Na sala polivalente, ao final da tarde, debatem-se temas atuais: «Iniciativas sociais de dinamização comunitária», «Mães contra a droga», «Crise financeira: origens e evolução». E quando esta se torna pequena para o público que a elas aflui, as sessões são realizadas também no pátio interior.


Pátio interior coberto visto de outro ângulo.
Na muito mais pequena Biblioteca de São Brás de Alportel, em Portugal, instalada no edifício de uma antiga moagem recuperada e adaptada, a sala de periódicos, logo à direita de quem entra, acolhe, pela manhã, os mais velhos que não prescindem da leitura dos seus jornais.
Biblioteca Municipal de São Brás de Alportel.
Nesta sala são também acolhidos os leitores com limitações motoras, já que o elevador existente não comporta uma cadeira de rodas e, em algumas tardes, uma leitora que gosta de um pequeno órgão que ali se encontra toca peças clássicas que ecoam no átrio e no pátio interior, onde também se celebram muitas festas.
 
Festa do 1º. aniversário do Projeto Aventura.
Às quintas-feiras, entre as 18h30 e as 20h00, o coro municipal, que reúne 40 elementos de cinco nacionalidades, ensaia na sala polivalente um repertório de música clássica, madrigal e folclore de várias línguas europeias.

Foto de grupo do Coro de São Brás.
O clube de leitura também se reúne da sala polivalente.
Na sala contígua, foram os adolescentes de São Brás que «obrigaram», com as suas conversas intermináveis, os seus telemóveis, os seus fones e as suas mochilas coloridas, a transformar a ex-sala de audiovisuais, agora com o acesso generalizado à Internet praticamente sem uso, na «sua» sala de leitura e de estudo.

Em 2008, Hannu Uusi-Videnoja, à época embaixador da Finlândia no Brasil, afirmava já, a propósito da extraordinária aposta do estado nas bibliotecas públicas finlandesas que o respetivo papel estava «a mudar rapidamente nesta nova sociedade da informação. Entre os novos desafios encontra-se a necessidade de ensinar os cidadãos a pesquisar, a avaliar, a comparar, a combinar e a usar adequadamente a informação disponível.»

Segundo Uusi-Videnoja, para a Finlândia a biblioteca pública «é um centro cultural local, um portal de qualidade que disponibiliza capital cultural e intelectual ao público, que pode usá-lo conforme as suas necessidades seja na biblioteca, seja através Internet.» Este embaixador filandês afirma que uma biblioteca municipal, seja numa área residencial ou numa pequena cidade, deve organizar-se de modo a proporcionar à sua comunidade:

  • uma sala de estar e de convívio;
  • o acesso à cultura e à informação;
  • a possibilidade de recuperação de informação independente;
  • uma rede de serviços públicos e privados;
  • múltiplos eventos e serviços culturais.

Para saber mais.
Com efeito, «de acordo com a visão adoptada (em 2003) na Estratégia das Bibliotecas para 2010, a biblioteca pública na sociedade finlandesa é uma instituição activa e eficaz, e de fácil acessibilidade à consulta pública. Encontra-se aberta a todos os interessados, o que fortalece a democracia. Transmite a herança cultural, apoia a construção de uma sociedade multicultural e promove o espírito comunitário. Oferece um ambiente de aprendizagem, apoiando pessoas de todas as idades e promove as competências necessárias a tornar os meios de comunicação acessíveis a todos».

Mas este documento vai ainda mais longe ao afirmar que, «os direitos à informação e à criatividade são considerados direitos humanos básicos. O direito à informação é intrínseco ao exercício pleno da cidadania e igualmente indispensável ao desenvolvimento da criatividade, a expressão própria do ser humano.»

Jens Thorhauge, Director Geral da Danish Agency for Libraries and Media, afirmava igualmente, em 2010, que a grande mudança recente na utilização das Bibliotecas Públicas dinamarquesas era a vivência que dela fazem as pessoas que a utilizam: ler, trabalhar, aceder à Internet, frequentar cursos, presenciais ou a distância, encontrarem-se, verem exposições, participarem em eventos culturais os mais diversos, constituem exemplos desta nova mudança.

Para saber mais.
Thorhauge sublinha que cada ano é mais diversificado o público que vai à Biblioteca Pública para participar nas atividades que esta oferece, as quais são também por seu turno cada vez mais dirigidas a públicos diferentes: jardins de infância, crianças com deficiências, clubes de leituras, iniciativas cívicas de apoio a minorias, serviços para empresas... Esta nova apropriação das bibliotecas pelo seu público é reveladora das potencialidades deste equipamento cultural: um verdadeiro centro cívico que oferece atividades culturais, sociais e educacionais. A chave desta mudança reside na assunção, por parte das bibliotecas, de uma atitude proativa alicerçada nas perguntas:


«precisa de ajuda?
 conhece o fundo antigo?
quer juntar-se ao debate?»

Em 2010, um Comité instituído com o objetivo de conceber o papel das Bibliotecas na sociedade do conhecimento e na necessidade de educação ao longo da vida, enuncia os princípios por que a Biblioteca Pública dinamarquesa se deve guiar: ser aberta à comunidade e cheia de vida, disponibilizar uma biblioteca digital e desenvolver múltiplas parcerias.


Também a NAPLE (National Authorities on Public Libraries in Europe) assinala que «o espaço biblioteca pública se encontra em considerável mudança na primeira década do século XXI»... Para além de «uma forte presença em termos de património edificado e de se tornar também cada vez mais central no desenho do tecido urbano, visível na construção de novas bibliotecas e na remodelação de outras, a Biblioteca Pública é um espaço agora descentrado da coleção e intensamente focado nos utilizadores, entrecruzando e reforçando serviços físicos e virtuais».

Criada há cerca de uma década com o objetivo de promover no seu conjunto as bibliotecas públicas europeias, a NAPLE tem-se evidentemente debatido com os problemas e as assimetrias inerentes ao estado da União Europeia. Contudo, a sua mais recente iniciativa: promover uma discussão em torno destas novas Bibliotecas Públicas, através da criação de uma base de dados sobre edifícios de bibliotecas que reúna os melhores exemplos das mais recentes bibliotecas europeias, pode sedimentar uma importante discussão em torno desta nova e substantiva mudança. Ainda em construção, esta base de dados pretende incluir um grande número de países que anunciaram já a sua vontade de a integrar. Segundo a NAPLE, «esta mudança está a ter lugar em toda a Europa e apela a novos conceitos e ideias».


2 comentários:

  1. Gostei bastante, embora muitas das nossas bibliotecas municipais já são há vários anos as tais salas de estar da comunidade. Parabéns!

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    1. Claro que sim, Sérgio, eu apenas mencionei dois exemplos distintos. Parabéns, sim, mas a todos os Bibliotecários que fazem estas bibliotecas todos os dias!

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