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sexta-feira, 27 de julho de 2018

«Leitura e felicidade»


Luís Santos, Sónia Almeida e Vera Oliveira


A relação entre «leitura e felicidade» é muitas vezes referida como intrínseca, nomeadamente no contexto do trabalho em promoção da leitura. Sendo um tema muito caro aos bibliotecários e aos grandes leitores (os que leem cerca de 30 livros por ano[1]), é hoje em dia consensual que os benefícios da leitura se traduzem em:
  • Aumento dos níveis de concentração, de memorização, de disciplina mental e pessoal;
  • Significativa melhoria da criatividade, da interação, da autoconfiança e do bem-estar;
  • Ampliação do vocabulário, e consequentemente da visão do mundo e ainda do despertar para novas ideias e valores culturais.
Na DGLAB, temos vindo a debater esta relação idealizada há mais de 20 anos (1996) e não podemos deixar de sublinhar aqui o quanto é em geral romantizada e mesmo, do nosso ponto de vista, redutora e subjetiva.

No âmbito do trabalho das Bibliotecas de Leitura Pública tivemos pois de ir sistematizando a definição destas noções, de modo a torná-las operativas, ou seja, para sabermos do que estamos exatamente a falar, mas também de maneira a que estas noções nos orientassem para objetivos concretos, exequíveis e adaptados ao tempo em que vivemos.

Assim, para nós, a noção de leitura é a da leitura do mundo, e de cada um de nós no mundo em que vivemos. Assim sendo, a leitura ultrapassa em muito a leitura de livros, de periódicos, de documentação multimédia e digital.

A leitura do mundo integra a leitura funcional (os horários da CP, as bulas dos medicamentos, o IRS…), a leitura dos meios de comunicação, a leitura das artes (do cinema, do teatro, da pintura…), a leitura da paisagem natural: a montanha, a planície, a orla marítima e da humanizada: a leitura das aldeias, vilas e cidades, a leitura dos sistemas em que nos integramos (políticos, sociais, económicos…).

A leitura de nós próprios implica, por seu turno, a interrogação pessoal, e o questionamento de quem somos e do que fazemos aqui e agora. Implica a consciência dos nossos estados espirituais: crenças, imagens e memórias mentais, visuais, auditivas, olfativas, sonoras, tácteis, intenções, emoções e o conteúdo do pensamento em geral: conceitos, raciocínios, associações de ideias[2]. Tão complexa quanto a leitura do mundo, a leitura de nós e do nosso relacionamento com os outros é aprendida na família, na escola, mas também através da religião e de inúmeras práticas de introspeção, de reflexão e de meditação, da psicoterapia, da psiquiatria e das terapias cognitivo-comportamentais. E da frequência da Biblioteca Pública.

A noção de felicidade não é menos complexa. Debatida pela filosofia clássica e só muito recentemente pela filosofia contemporânea, mas sobretudo pela psicologia positiva que aborda o funcionamento positivo da personalidade, o bem-estar subjetivo e o ensino da resiliência[3]: constitui uma noção que também necessita de ser definida para que saibamos do que estamos a falar. A felicidade é, como todos sabemos, subjetiva, pessoal, social, cultural. De entre os especialistas que mais recentemente se têm debruçado sobre esta noção, encontram-se Martin E. P. Seligman, psicólogo americano, responsável pelo Centro de Psicologia Positiva, professor da Universidade da Pensilvânia e Ex-Presidente da Associação Americana de Psicologia e Mihaly Csikszentmihalyi (psicólogo americano de origem húngara, professor e responsável pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Chicago).



Para este último, as pessoas são mais felizes quando estão num estado que denomina de «fluxo» (de fluir), um estado de concentração completa numa determinada atividade ou situação. Um estado ótimo de motivação intrínseca, em que a pessoa se encontra imersa no que está a fazer. Uma sensação que (quase) todos já experienciámos e se caracteriza por uma sensação de grande liberdade, de prazer, de compromisso e de habilidade/capacidade durante a qual as sensações temporais (o tempo, a alimentação, o eu) são ignoradas. Resumindo, o estado de fluxo pode descrever-se como um estado em que a atenção, a motivação e a situação se conjugam, resultando numa harmonia produtiva que se retroalimenta. Para se conseguir este estado é necessário alcançar-se um estado de equilíbrio entre o desafio inerente à tarefa e a habilidade de quem a realiza[4].

Neste sentido, para nós, leitura e felicidade unem-se e traduzem-se no que Jesús Martín-Barbero, conhecido semiólogo e filósofo colombiano, reclama como o exercício da cidadania, por parte de cada um de nós: a capacidade de contarmos a nossa própria história e a da nossa comunidade, oralmente e por escrito. De modo a refletirmos, criticarmos, defendermos e melhorarmos a vida que vivemos. Para tal, precisamos de dominar a leitura, a escrita e a oralidade, de saber ler, escrever e falar em público[5].

Por isso creditamos que o papel da Biblioteca Pública pode não ser único, mas é muito mais do que apenas o lugar e o meio de transmissão do conhecimento e do saber em todas as áreas das ciências e das artes, a Biblioteca é um lugar de aprendizagem da cidadania, do eu na relação com o outro, simultaneamente igual e diferente de mim. Um lugar de sociabilização, onde se promove a discussão elevada de todas as ideias. Um lugar de ampliação da consciência da identidade individual e comunitária. Um lugar de vitalidade psicológica é física: Mens sana in corpore sano, uma das principais características das bibliotecas resilientes, como tão bem nos explica a bibliotecária americana Karen Muro em «Resiliencia frente a sostenibilidad: el futuro de las bibliotecas»[6].


* * * 

Sendo estas as nossas linhas orientadoras de ação, como pode a Biblioteca Pública trabalhar para oferecer e desenvolver na sua comunidade este tipo de leitura e este tipo de felicidade? Não podemos seguramente contentarmos-nos, como até agora, com uma penetração máxima de 15% na comunidade que servimos.

Em primeiro lugar, trabalhando para conhecer profundamente a comunidade em que nos integramos, trabalho este sem o qual não é possível fazer o que é exigido a uma biblioteca pública segundo os critérios internacionais do nosso tempo. Sendo o nosso país muitíssimo diversificado, também não será possível transpor tal e qual todas as melhores práticas de que temos conhecimento sem as adaptar devidamente.

De todo o modo, a Biblioteca Pública terá necessariamente de sair da sua casa. Não poderá também prescindir de uma a equipa motivada para a inovação. E terá ainda de encontrar parceiros. Saindo da Biblioteca, como já foi referido, mas também mantendo uma observação e um diálogo constantes com os utilizadores, a equipa da biblioteca pode adquirir informação pertinente sobre as necessidades e os problemas do seu público.

Nos EUA é comum hoje em dia recorrer-se ao design thinking[7]. Na realidade, trata-se apenas de deixar de fazer o que sempre fizemos e de falarmos com os utilizadores. Não se trata de pensarmos em novos serviços que possamos acrescentar à Biblioteca, mas sim de interagirmos ativamente com os utilizadores. Se o fizermos como é suposto, seremos obrigados a criar toda uma nova estratégia com base nas novas dinâmicas que deste modo introduziremos na Biblioteca.

Para repensarmos a nossa atividade, temos de falar com as pessoas nas suas próprias casas, no seu ambiente. Temos de conhecer as suas necessidades e os seus desejos. Só assim obteremos informação sobre os nossos utilizadores: os diferentes grupos de utilizadores em que se inserem (estudantes, famílias, investigadores, reformados…) e sobre os nossos não utilizadores. Não se trata já de, como afirma a bibliotecária Cathy King, colocar a Biblioteca no coração da comunidade, mas sim de colocar a comunidade no coração da Biblioteca[8].

Em todo o mundo, as Bibliotecas Públicas são cada vez menos definidas pelo número de livros que exibem nas estantes e cada vez mais por serem espaços vivos onde as pessoas convivem. Nos países desenvolvidos, as Bibliotecas sempre foram conhecidas por se alinharem com o que as pessoas querem de facto, como aconteceu no que respeita às novas tecnologias em que as Bibliotecas deram o exemplo ao serem as primeiras a oferecerem computadores ao público e formação nesta área aos seus utilizadores.

Presentemente, as pessoas estão cada vez mais interessadas em aprender diferentes matérias e atividades e pretendem uma interação social com possibilidade de partilha de conhecimentos com outras. As Bibliotecas são cada vez mais um lugar de encontro, de relacionamento e de trabalho entre utilizadores e entre estes e bibliotecários, que temos de facilitar e oferecer. Para tal necessitamos de novas competências, bem como de adaptar os espaços físicos de que dispomos às necessidades dos novos grupos que queremos servir.

Esta nova Biblioteca Pública do século XXI é pois muito mais do que o tradicional serviço baseado em livros[9] e pode tornar-se num centro de troca de conhecimento e de cultura, onde as pessoas quererão muitas horas. O nosso objetivo é servir toda a comunidade, com certeza mais de 50% de penetração na nossa comunidade.


Um exemplo frutuoso: as parcerias

Para tal é também necessário estabelecer parcerias com outras instituições públicas locais, oferecendo um misto de serviços à comunidade. Fazendo-o como uma forma de dar a conhecer outros serviços públicos ou de partilhar o espaço com essas outras instituições (Biblioteca Municipal de Avis: serviços de educação e apoio psicológico).

Parcerias que oferecem serviços públicos fiáveis, como orientação e apoio na obtenção de cartões de cidadão e de passaportes, de cartas de condução, de casamentos e ainda apoio a serviços mais pessoais como os impostos, o divórcio, a educação das crianças…

Parcerias com hospitais e centros de saúde que permitam oferecer serviços médicos simples ou formação básica. Tal é o caso Enfield Council’s Ordnance Road Library inglesa que combina os serviços da Biblioteca e o acesso público à saúde, mas também o da nova Unidade Móvel de Anadia que se baseia no trabalho da Bibliomóvel de Proença-a-Nova, ou o caso do apoio ao Hospital do Fundão disponibilizado pela Biblioteca Municipal do Fundão.

Parcerias com os Serviços de Apoio a Crianças em Risco que formalizem este tipo de apoio aos mais jovens, com objetivos, públicos-alvo e contrapartidas bem definidos, de modo a que as bibliotecas não sejam meras babysitters de substituição (Biblioteca Municipal de Anadia.)

Parcerias com estabelecimentos de ensino superior ou Centros de Formação que permitem oferecer formação creditada a diferentes tipos de público: professores (Biblioteca Municipal da Batalha, Biblioteca de Mondim de Basto), adultos (Biblioteca Municipal de Penalva do Castelo)...


Parcerias com organizações e empresas privadas, estas, evidentemente mais difíceis de estabelecer, constituem todavia um território de oportunidades a fomentar (a parceria Padrinhos da Leitura, em Moura, nada mais é do que o convite a pequenos empresários locais para oferecerem a uma turma do 1º ciclo, anualmente, um livro a cada criança, em troca de um diploma institucional). 

Parcerias para obtenção de serviços de cafeteria que podem ser simples máquinas de bebidas e sanduiches ou que podem funcionar muito melhor do que os cafés das redondezas, como é o caso da Biblioteca Municipal de Tavira e da Suzzallo Library USA que abriu recentemente uma nova cafeteria em parceria com Starbucks. Ambos os casos atraem um número considerável de pessoas, muitas das quais não eram utilizadoras da Biblioteca.

Parcerias com empresas loca
is que possam oferecer workshops e formação especializada: a Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão oferece formação especializada sobre permacultura (produção, acondicionamento e mercado) a cerca de 60 agricultores que nunca antes tinham entrado na Biblioteca e que solicitaram posteriormente mais formação.

Temos de nos adaptar e de abraçar a mudança. De modo a transformarmos a Biblioteca num espaço comunitário (da comunidade) onde as pessoas possam obter a informação de que necessitam, resolver um problema com que se debatem, ler tranquilamente um livro, participar num workshop, ver uma exposição, tomar um café, fruir de um tempo em família, combinar um encontro com amigos, namorar, estudar para os exames, redigir uma tese … Um lugar de aprendizagem e de troca de ideias, de bem-estar, onde com toda a certeza nos sentiremos… felizes!