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quarta-feira, 28 de março de 2012

«Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos?»: Bibliotecas Públicas Municipais 2012

RNBP 1987-2012

Tudo começou com um sonho porque na realidade tudo o que que é verdadeiramente importante na vida sempre começa como um sonho. Rómulo de Carvalho foi uma das personalidades da nossa história recente que o afirmou poética e hiperbolicamente em Eles não sabem que o sonho... E não certamente por acaso, foi este poema que o tornou popular no nosso país, quando toda a actividade deste professor, cientista e poeta era já então sobejamente conhecida no meio intelectual português.

Foi também assim que nasceu a RNBP... Um pequeno grupo de pessoas e um grande sonho. Uma imensa lacuna na construção de um país livre e democrático, muitíssimo trabalho, uma dedicação quase sem limites, um compromisso pessoal e social: «O sonho comanda a vida»!
  
 Do encantamento inicial com a «Hora do conto»...

... aos grandes Encontros em torno da narração oral, como as «Palavras Andarilhas», em Beja,
... e da leitura, como os «Caminhos da Leitura», em Pombal,
... à Web 2.0,
.... às bibliotecas digitais sobre o património intangível da nossa história local!
Interrogamo-nos muitas vezes, com desânimo, sobre como é possível o poder político, em particular o autárquico, não ter a noção do que é uma Biblioteca Pública Municipal, tanto no que significa para uma comunidade, como, para que funcione, em investimento em recursos humanos, bens, serviços e despesas correntes... Trabalhámos já tanto! Demos já tantas provas!

Deveríamos, contudo, recordar que os portugueses com mais de 35 anos não têm, nem poderiam ter, nem a noção de pertença, nem muito menos a das potencialidades de um Biblioteca Pública no sentido em que a UNESCO a define. Não que o trabalho realizado em Portugal nos últimos 25 anos nesta área, não tenha sido muitíssimo... Mas partimos de um patamar muito baixo e que, sem a Fundação Gulbenkian, seria próximo de 0. E não temos, como em outros países desenvolvidos, mais de 100 anos de presença ativa destes equipamentos culturais nas respetivas comunidades.

Quando as Bibliotecas Públicas Municipais / RNBP «chegaram» ao nosso país, nós, os que agora sabemos o que são e sobretudo o que podem ser estes equipamentos culturais, vivemos um tempo de encantamento. E também de muito estudo e reflexão.

Conhecemos, maravilhados, as bibliotecas públicas com mais de 100 anos...
... estudámos, em francês e em inglês, o tratamento documental,
... a gestão biblioteconómica,

.... aprendemos UNIMARC,
     
e analisámos a Z 39-50, em «bibliotequês» puro e duro!

Entre o deslumbramento, o compromisso e o espírito de serviço público, dedicámos dias e dias de imaginação ao espaço maravilhoso da hora do conto, estudámos o equipamento específico das bibliotecas públicas (dos pufs às estantes compactas de depósito), os espaços e os circuitos funcionais da Biblioteca. Discutimos até à exaustão e acesamente o livre acesso, a CDU, os centros de interesse, o sistema de cotação… E, quase sem interrupção, as bases de dados bibliográficos, o Unimarc, o $a, o campo 702, as Porbases, a importação de registos, a Z 39.50... No conjunto de todos nós, investimos meses e meses, anos, na construção de um saber técnico especializado com que contribuímos para que ganhassem vida os edifícios das Bibliotecas Municipais do nosso país.

«Levantadas do chão» com o incentivo e o apoio da DGLB, com a vontade por vezes visionária de muitos autarcas e com o trabalho incansável de bibliotecários e outros técnicos comprometidos com esta causa, podemos afirmar que é agora, em 2012, que existe uma rede de bibliotecas públicas de dimensão nacional.  Mas é também agora que as Bibliotecas Públicas Municipais irão ter de vencer um enorme desafio. Mais um, é verdade. Mas estrutural.

Com efeito, a crise que vivemos, conjugada com as mudanças tecnológicas em constante aceleramento, tanto poderão consolidar a inscrição definitiva das Bibliotecas Públicas nas suas comunidades, como demonstrar que as Bibliotecas Municipais em alguns casos deixaram de fazer sentido. Talvez, no conjunto do território nacional, ambas as situações ocorram: nuns sítios evoluindo as Bibliotecas Públicas para grande centros de partilha crítica de todas as formas de conhecimento, noutros pura e simplesmente fechando as portas.

RNBP 2012-2037?
É verdade que não podemos conhecer de antemão o futuro mapa que sinalizará a RNBP nos próximos 25 anos. Talvez seja efectivamente muito difícil prever o que sucederá com este tipo específico de equipamento cultural, mesmo nos países em que as Bibliotecas vivem há mais de 100 anos. Todavia, o que sabemos seguramente, é que este é um tempo em que as Bibliotecas Públicas serão postas à prova e que este desafio deverá ser encarado como um estímulo e uma oportunidade únicos. 

Porque a manutenção de Bibliotecas Públicas ativas implica efetivamente um investimento  financeiro contínuo, por parte do poder político, e um investimento em estudo, trabalho, reflexão e criatividade permanentes, por parte das respetivas equipas técnicas: uma dedicação que apenas o amor ao que fazemos e o espírito de missão poderão muitas vezes sustentar. Pelo que necessitamos, mais do que nunca, de estudar e de trabalhar muito, de reunir esforços e de partilhar projectos. E de não prescindir de uma grande dose de sonho, de preferência em formato XXXL. O formato dos sonhos verdadeiramente importantes na vida.

    
                                                                   
                                                                   Pelo sonho é que vamos,
                                                                   comovidos e mudos.
                                                                   Chegamos? Não chegamos?
                                                                   ....... 


                                                                   ─ Partimos. Vamos. Somos.
                                                                                             Sebastião da Gama

quinta-feira, 22 de março de 2012

Um lugar extraordinário: a Biblioteca Pública Municipal

Acredito que, de entre os mais extraordinários lugares concebidos pelo ser humano, a Biblioteca Pública detém um estatuto de eleição. Com efeito, se me perguntarem «para que serve uma Biblioteca Pública?», a minha resposta, 25 anos depois de começar a estudar as potencialidades destes espaços únicos, não tenho dúvidas em responder que a Biblioteca Pública serve para vivermos uma vida melhor!

  
E, com efeito, pela diversidade do conhecimento que disponibiliza e pela reflexão partilhada que promove, a Biblioteca Pública é o lugar por excelência do conhecimento crítico, da liberdade de espírito, da construção da cidadania, do sentido de comunidade, do melhor que os sapiens sapiens realizaram à superfície da terra. Nas palavras de Carl Sagan, a Biblioteca de Alexandria, paradigma por excelência de todas as bibliotecas, era o cérebro e a glória da grande cidade, o local onde se pode dizer que teve início a aventura intelectual que nos conduziria ao espaço, a cidadela da consciência humana. Onde se estudava tudo e tudo se discutia. Tudo, o cosmos, palavra grega que significa «ordem do Universo», em oposição ao caos.


 (ft. Sagan, Dawkins, Kaku, Jastrow)
Jesús Martín-Barbero, conhecido semiólogo e filósofo colombiano, afirma que o exercício da cidadania requer, por parte de cada um de nós, a capacidade de contarmos a nossa própria história e a da nossa comunidade, o único modo de sobre elas reflectirmos, de as criticarmos, de as melhorarmos, de as defendermos. Para tal, precisamos de dominar a leitura, a escrita e a oralidade, ou seja, de saber ler, escrever e falar em público.

1º de Maio de 1974

Por isso, mais do que apenas o lugar do conhecimento e do saber em todas as áreas das ciências e das artes, a Biblioteca Pública é o lugar da aprendizagem da cidadania, do eu na relação com o outro, simultaneamente igual e diferente de mim. Um lugar de sociabilização, onde se promove a discussão elevada de todas as ideias. Um lugar onde podemos estar sós e acompanhados. Um lugar de ampliação da consciência da identidade individual e comunitária. Um lugar maravilhoso e insubstituível.

Biblioteca Municipal de Sintra

quarta-feira, 21 de março de 2012

FELIZ (fim de) DIA MUNDIAL DA POESIA!

«Formiga Bossa Nova» de Adriana Calcanhoto (2004), a minha versão preferida do poema de Alexandre O'Neill, com música de Alain Oulman para Amália Rodrigues.


Adriana Calcanhoto, 2011
Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora
não querer.
(-Obrigado, formiga!
 Mas a palha não cabe
 onde você sabe...)



                
(1924-1986)
AUTO-RETRATO, 1962



O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O' Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sobre a ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...


Nota biográfica: De ascendência irlandesa, A.O. nasceu em Lisboa, em 1924. Frequentou, depois do liceu, o Curso de Pilotagem da Escola Náutica, mas toda a sua vida foi antes do mais um autodidacta. Trabalhou em diversas áreas: na Previdência, no ramo dos seguros, nas bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, em publicidade e como cronista no Diário de Lisboa. Será, todavia, enquanto poeta maior que ficará na literatura portuguesa do século XX. Fundador do surrealismo português, de A. O. pode dizer-se que viveu em permanente estado poético e é, recorrendo sistematicamente a uma sátira impiedosa, mesclada de humor e de lirismo, que nos apresenta a sociedade portuguesa do seu tempo. Recebeu, em 1982, o Prémio da Associação de Críticos Literários.